A Vida do fundador dos Companheiros de Emaús ficou marcada pelo "combate pela justiça e pela fraternidade"
Figura emblemática do combate à exclusão e iniciador dos Companheiros de Emaús, o Abbé Pierre morreu ontem, 22de janeiro de 2007, aos 94 anos, num hospital de Paris onde tinha sido internado no dia 18 na sequência de uma bronquite.
A França está de luto, "perturbada" e "tocada no coração", como afirmou o Presidente, Jacques Chirac, numa declaração logo após a morte daquele que era a personalidade mais querida dos franceses há longos anos. Morreu um "gigante da misericórdia", disse o arcebispo de Bruxelas, cardeal Godfried Danneels.
"A sua morte fez-me pior que o frio desta manhã", queixava-se ontem Gilles Vasseur, um sem-abrigo a viver numa tenda num bairro dos arredores de Paris, à reportagem da AFP. "Nós, os sem-abrigo, os sem nada estamos hoje todos órfãos."
À direita como à esquerda política, mas também entre responsáveis de associações de apoio social ou instituições religiosas, o lamento pela morte do Abbé (padre) Pierre foi unânime.
O cardeal francês Roger Etchegaray, ex-presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, afirmou que o fundador de Emaús "nunca se enganou no combate, declarando guerra à miséria e desejando que os primeiros a servir fossem os mais sofredores".
Também os bispos franceses lhe prestaram homenagem. Em nome do episcopado belga, o arcebispo de Bruxelas saudou a memória do Abbé Pierre referindo-se a ele como "gigante da misericórdia". "Para lá das particularidades religiosas ou filosóficas, ele lembrava a cada um o seu dever de humanidade. Possa ele repousar em paz e suscitar em muitas pessoas o desejo de prosseguir o seu combate pela justiça e pela fraternidade."
As homenagens da Igreja surgem apesar das polémicas que afirmações e posições, pouco seguidoras da ortodoxia católica, suscitaram. Mesmo em casos recentes, como quando o Abbé Pierre confessou, há pouco mais de um ano, ter mantido relações sexuais com mulheres (ver caixa), a surpresa passava rapidamente.
Conta o Abbé Pierre em Testamento (ed. Notícias) que o bispo Jacques Gaillot, ele próprio marginalizado pelo Vaticano na sequência de posições polémicas, lhe perguntou um dia: "Explique-me um mistério: eu, assim que abro a boca, levo uma tareia. Você, em contrapartida, diz dez vezes mais e a mensagem passa sem problemas."
O padre respondeu que não era bispo e que "o Bom Deus" lhe dera um "instinto de insolência comedida", que lhe permitia ver até que ponto poderia "clamar".
"Antes de te matares..."
Certo é que clamou e fez muito. Resistente à ocupação da França pelos nazis, antigo deputado, Henri Grouès de seu nome de baptismo nasceu em 5 de Agosto de 1912 em Lyon, numa família numerosa - há mais de uma década já tinha 123 sobrinhos. Estudou com os jesuítas mas entrou aos 19 anos nos Franciscanos Capuchinhos. Já no tempo da ocupação nazi, recorda a AFP, entrou na clandestinidade em 1942, ajudando judeus e resistentes. Esteve preso em 1944 às ordens dos alemães, mas conseguiu escapar. Foi depois deputado entre 1945 e 1951.
É precisamente nesse período que, já dedicado a apoiar mães e crianças em dificuldade, um acaso o leva a criar os Companheiros de Emaús. Em Julho de 1995, em entrevista ao PÚBLICO numa das suas vindas a Portugal, o próprio contava que, perante um homem desesperado que queria suicidar-se, lhe disse: "Antes de te matares, não queres ajudar-me a acabar algumas destas casas para essas mães que choram?"
Em 1954, durante um Inverno especialmente rigoroso, lançou o apelo à "insurreição da bondade", como lhe chamou. O apelo foi renovado 40 anos mais tarde, em 1994 (e de novo há um ano, em plena Assembleia Nacional), para denunciar o "cancro da pobreza", pedir apoio para os mais de 400 mil sem-abrigo franceses e defender o direito ao alojamento digno para todos. A sua popularidade levou-o a ser convidado há poucos anos para integrar uma candidatura ao Parlamento Europeu.
No livro Testamento, escreve no final: "Se posso transmitir uma certeza aos que vão conduzir a luta para instilar mais humanidade em tudo, será (decididamente, não posso escrever outra coisa): "Viver é aprender a amar."" Foi esse o seu lema.
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Relações sexuais com mulheres, a última confissão
Personalidade controversa, o Abbé Pierre guardou quase para o fim da vida algumas revelações surpreendentes e a defesa de ideias pouco queridas pela hierarquia católica: No livro Porquê, Meu Deus? (que será publicado em Portugal, em Março, pela Dom Quixote), editado em França em Outubro de 2005, o fundador dos Companheiros de Emaús confessa ter tido relações sexuais com mulheres, de "forma passageira". O padre, que era a personalidade mais popular entre os franceses, acrescentava ter conhecido "a experiência do desejo sexual e da sua muito rara satisfação, mas essa satisfação foi uma verdadeira fonte de insatisfação, porque sentia que não estava na verdade". Essa confissão, no entanto, é uma curta passagem do livro, dominado por temas polémicos no interior da Igreja: celibato dos padres, defesa da possibilidade de adopção pelos homossexuais ou a hipótese de ordenação de mulheres. Em Portugal, além deste novo livro, a Editorial Notícias publicou, do Abbé Pierre, os títulos Testamento, Fraternidade, As Quatro Verdades e O Absoluto. A.M.
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Três grupos para apoiar pessoas marginalizadas em Portugal
O movimento Emaús, de luta contra a pobreza, cujo fundador morreu ontem em França, está representado em Portugal por uma comunidade em Caneças, Loures, e dois grupos no Porto, com 50 pessoas no total.
O fundador da primeira comunidade Emaús, que surgiu em 1949 em França, esteve pela última vez em Portugal no ano passado, para participar na assembleia do movimento, tendo-se deslocado a Fátima, onde rezou uma missa.
Emaús é o nome de uma localidade na Palestina onde, segundo a Bíblia, Jesus apareceu a dois dos seus discípulos após a ressurreição. Baseados na ideia de revender objectos recuperados, os Companheiros de Emaús são um grupo de entreajuda de pessoas marginalizadas (sem-abrigo, ex-reclusos, toxicodependentes).
Abbé Pierre "era uma pessoa fora do comum, completamente dada aos outros", disse à agência Lusa Humberto Pereira, um dos responsáveis da comunidade Emaús de Caneças, que lhe serviu de motorista em Portugal.
O movimento instalou-se em Portugal em meados da década de 1980 e actualmente conta entre 20 a 30 membros na comunidade de Caneças e dois grupos de 10 companheiros (designação dada aos membros) cada no Porto.
Tendo como regra não receber dinheiro da Segurança Social ou quaisquer subsídios oficiais, os companheiros recolhem móveis, electrodomésticos, roupas e outros objectos em segunda mão, que depois recuperam e vendem em lojas ou em feiras.
Uma parte do dinheiro obtido destina-se a apoiar projectos dos grupos locais, outra é enviada para a Emaús internacional, para financiar projectos em países em vias de desenvolvimento. Actualmente, a comunidade de Caneças está a apoiar projectos das Irmãs Concepcionistas em Moçambique e Timor.
Numa sociedade que, segundo Humberto Pereira, "não se preocupa em estragar" e tem "um grande preconceito em relação a coisas usadas", é mais fácil recolher objectos do que vendê-los. Portugal é um dos 40 países que acolhem os mais de 400 grupos de Emaús existentes no mundo. Lusa

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