Padre Henri Marie Le Boursicaud

O movimento Emaús começou, no Ceará, com doação simbólica do padre Henri, fundador do Emaús Liberté, na França. Após 16 anos de recuperação de usados em oficinas profissionalizantes, vendidos a preços populares, mantém o propósito de ajudar a quem mais precisa

Quando o senhor criou o movimento Emaús Liberté?Em 1972, fundei o Emaús Liberté, na França, com um amigo chamado João, porque nunca se funda um movimento sozinho. O movimento tem duas finalidades. Aliviar o sofrimento depressa e lutar contra as causas da miséria. Hoje, o Emaús está presente em 48 países. Ele está em países onde existem pobres e a pobreza existe em todos os lugares do mundo. Os pobres cada vez mais se multiplicam.

Como o senhor analisa a miséria em pleno século XXI?O mundo sempre viveu movido por duas correntes: poder e dinheiro; amor e justiça. A guerra entre os países acabou. O que vai existir é cada vez mais guerra entre ricos e pobres. Hoje, observo que os pobres não estão mais pisados, estão prontos para a luta, sendo muito importante a informação. Os pobres estão abrindo os olhos e a Internet abre um mundo de informações.

O senhor poderia contar um pouco da história de criação do Emaús Internacional?O Abbé Pierre fundou o movimento Emaús, em 1949, na França. O encontrei, pela primeira vez, em 1954. Chegou à Bretanha, na França para falar com o povo e aos jornalistas. Apertei sua mão e foi a semente. O tempo passou e, em 1972, estava na rua quando o encontrei novamente. Abbé Pierre, burguês, da família mais alta da França e do mundo talvez (ri), julgava que os pobres são boa gente, que era preciso compaixão, mas cuidado, pois eram ladrões, não por culpa deles, por isso era preciso ter cuidado. Assim, não podia me aproximar deles. Observei que tinha um caderno na comunidade no qual estava escrito o nome dos novos companheiros. E, cada semana, a polícia chegava para olhar o caderno e apanhar um ou outro para colocar na cadeia. Quando vi aquilo, disse, não, nunca vou colaborar dessa maneira. Quando cheguei à capela, não desejava mais fundar a comunidade. Estava arrependido. Disse que era muito pequeno, portanto, não era possível.

Como chegou ao Brasil?Cheguei ao Brasil em 1986. Depois de anos, a comunidade na França podia continuar sem a minha presença. Graças a um amigo, fui a Portugal conhecer o movimento Emaús. Falei em 300 lugares diferentes do movimento. Num domingo à tarde, falei para apenas seis pessoas. No fim do encontro, uma senhora se levantou e disse que não era portuguesa, mas brasileira e que, depois de Portugal, eu iria à sua terra para fazer o mesmo que estava fazendo na Europa. E pagou o bilhete do avião. Quando cheguei a São Paulo, fui recebido no convento dos Redentoristas e disse: aqui não é o meu lugar. Mas como fazer? Fui viver no meio de catadores de papelão, no Centro de São Paulo. Trabalhei como catador. Fui, depois, para Campo Grande, onde vivi seis meses com os pobres e trabalhei com eles. Fui bem recebido na casa de um padre, mas disse que não era o meu lugar e fui viver na favela com três seminaristas.

Qual foi a sua próxima parada?Cheguei, depois, a Crateús, onde encontrei dom Fragoso, um bispo forte, corajoso, amigo dos pobres. Como não tinha mais dinheiro, vim para Fortaleza. Fui a quatro bancos para trocar dinheiro. No quinto banco, o funcionário disse que não havia trocado ainda. Olhei um poema que estava sobre sua mesa e disse que era bonito mas faltava uma palavra. Estava escrito amor, mas faltava a palavra justiça. Ele me levou até a Sé e conheci Airton Barreto, numa barraca trabalhando. Passei dois meses na casinha da praia, no Pirambu. Após seis anos, voltei para fundar o movimento Emaús do Pirambu. A estrada estava pronta porque não se funda o Emaús sozinho, o José (Airton Barreto) tinha muitos amigos pobres.

O Emaús tem missão específica?O Emaús tem dois braços e duas mãos. A primeira é para aliviar o sofrimento dos pobres imediatamente. Por isso é preciso acolher, trabalhar e partilhar com eles. A segunda, a luta, que é feita pela comunidade. Os companheiros perto da comunidade, um grupo de amigos, homens fortes e ricos, mas que têm coração para organizar, são a outra mão do movimento. Isto é, a luta contra as causas da miséria. Através da política, dos jornais e todos os meios.

Na sua opinião, quais são as causas da miséria?O poder e o dinheiro.
Elas devem ser combatidas e não aliviadas...
Aliviar depressa, mas não basta. Porque aliviar o sofrimento sem lutar contra as causas é desonesto. Ataco todas as organizações que fazem bem aos pobres, mas que não gostam de buscar as raízes da miséria.

Como o Emaús se mantém?Mediante acolhimento e partilha. Pode ser qualquer trabalho: no campo, nas fábricas.

Qual a impressão do movimento do Emaús Vila Velha, localizado numa região de mangue?Não é impressão. Vi os porcos no seminário dos Capuchinhos, em Guaramiranga, e percebi que vivem em melhor condição do que os pobres do Vila Velha.

O senhor questiona a estrutura da Igreja. Qual o futuro dela?A Igreja, fundada há dois mil anos, é uma semente que o profeta de Nazaré deitou no mundo, servindo para provar que vem de Deus. Nasceu no tempo agrário e estamos na era nuclear. Qual será a sua organização? A organização hierarquizada vai acabar. Vai ser uma grande comunidade de comunidades. Aqui estou fazendo amizade com os protestantes. Estou pensando no futuro. Por isso não odeio os protestantes, prefiro compreender como uma comunidade próxima da outra e não como pessoas fora da verdadeira Igreja.

Essa aproximação é recente?Quando fui missionário na França, com 30 anos (risos), fiquei numa região onde havia muitos protestantes. Naquele tempo, era pecado venial falar com protestantes. Cometi muitos pecados veniais.

O senhor acha que o mundo caminha para o ecumenismo?O Vaticano não pode se transformar assim. Não sei como, mas o templo de Jerusalém vai cair.

Como o senhor analisa o quadro de desigualdade social mundo afora e, em especial, no Brasil?Essa é a realidade do mundo inteiro. Porque a guerra de um país contra outro não vai existir mais. As guerras do presente e do futuro serão em cada país, entre os ricos e os pobres.

Como trabalhar ética, solidariedade e partilha numa sociedade marcada pelo excesso?É possível porque a liberdade existe.

Qual o papel da juventude na transformação da realidade?
Está na raiz da infância. Cito dois exemplos: quando tinha seis anos, minha mãe me pediu para levar uma cesta para uma senhora, distante dois quilômetros. Depois de 200 metros, levantei a tampa do cesto preto, cuja imagem carrego durante 74 anos, e havia pão e carne. Fechei o cesto e levei à senhora. Quando conto a história para as crianças, elas respondem: "você comeu tudo" e digo que não. Recentemente, vi uma senhora que falava com o seu filho, da mesma minha idade sobre um bolo que ele tinha ganho. Ela perguntou se ele havia dado um pedaço para alguém, ele disse que não tinha dado nenhum um pedaço e a mãe não recriminou. Dois caminhos, um da partilha e o outro, não. Eu aprendi com minha mãe o da partilha.

O que o senhor acha dos programas de renda mínima, como o Bolsa Família?
É uma coisa boa, mas se é uma maneira de esconder a pobreza ou explorar a pobreza, é feio. É hipocrisia a denunciar.

FIQUE POR DENTRO 
Movimento Emaús em Fortaleza
Existem dois Emaús em Fortaleza: o Movimento Emaús Amor e Justiça, no Pirambu; e o Vila Velha. O primeiro tem 16 anos e o da Vila Velha, três. Começou com uma doação do padre Henri, de US$ 18,00. No Ceará, o movimento vive de doações de usados, que são recuperados em oficinas profissionalizantes. Pode ser roupa, material eletroeletrônico, calçados, brinquedo. O material é arrecadado por meio contato telefônico: (85) 3282.1382. Após a recuperação, os objetos são vendidos à comunidade no Bazar Emaús, por preços populares. O dinheiro tem três destinos: dar dignidade aos companheiros; trabalhos sociais com os mais pobres; e apoiar o nascimento de outros Emaús, como ocorreu com o Vila Velha



Entrevista realizada em 4/10/2009
IRACEMA SALES

REPÓRTER


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=677027

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